terça-feira, 30 de julho de 2013

O paraíso não existe


Uma das várias versões de O Paraíso, do pintor belga Jan Brueghel (1568-1625).

Com 24 anos, o escritor Tzvetan Todorov deu as costas à Bulgária comunista sem saber que também viraria um crítico da democracia ocidental.
Por Maria da Paz Trefaut

Em uma era de polarização política, o pensador franco-búlgaro Tzvetan Todorov, 73 anos, não é um homem de extremos. Com a mesma veemência, critica o totalitarismo comunista, que experimentou em seu país, a Bulgária, e o modelo liberal-democrático ocidental, que tenta impor seus valores pela força em vários países. Na sua visão, um e outro constituem formas de “messianismo humanitário” que configuram ameaças à democracia.

Essa é a tese central do último livro do autor, Os Inimigos Íntimos da Democracia, recém-lançado no Brasil (Companhia das Letras). Todorov escreveu ensaios literários, obras de filosofia, linguística e crítica política, discorrendo sobre assuntos tão diferentes como a conquista da América e os campos nazistas. Seus livros já foram traduzidos em 25 países.

Nada indicava uma carreira internacional em 1963, quando deixou Sófia, capital da Bulgária, durante o regime comunista, para se radicar em Paris. Durante décadas, Todorov construiu uma refinada obra sobre teoria literária. Viveu na costa leste dos Estados Unidos e deu aulas na Universidade Yale. Depois, assumiu o cargo de professor da École Pratique de Hautes Études, em Paris. Em 2008, seu reconhecimento consolidou-se quando recebeu o Prêmio Astúrias para Ciências Sociais, da Espanha. Hoje, é conferencista disputado por universidades do mundo inteiro.

No Brasil, Todorov esteve pela primeira vez em 1969. Como palestrante do ciclo Fronteiras do Pensamento, falou com exclusividade à PLANETA, em São Paulo, reafirmando a força de uma reflexão sobre o mundo contemporâneo que não leva nem ao otimismo nem ao pessimismo: “Tento ficar lúcido, apenas.”

O sr. afirma que o colonialismo, o comunismo e o imperialismo têm políticas semelhantes, na medida em que tentam se impor pela força em nome do bem. Por que é tão difícil perceber isso?
É difícil porque esses movimentos políticos se apresentam como promotores do bem comum. Todos ficam orgulhosos de participar de uma empresa que aparenta levar a felicidade ao mundo. Isso funciona muito bem. Foi por isso que as pessoas se engajavam nas Cruzadas, durante a Idade Média, e, durante o período colonial, pensavam sinceramente que deveriam levar aos seus irmãos africanos ou asiáticos a civilização, as luzes, a tecnologia e a medicina – todos esses benefícios que o homem ocidental considera indispensáveis. Também havia sinceridade nesses movimentos, não era só uma exploração cínica. É próprio da nossa natureza não querer olhar como somos vistos do exterior. Só conseguimos nos olhar depois que o tempo passou.

É uma limitação da percepção?
Exato. Quando a escravidão existia, ela não chocava as pessoas. Os mais generosos, os mais impregnadas pelo espírito de justiça, achavam que era assim mesmo: havia escravos e homens livres. Só depois, pouco a pouco, a escravidão se tornou algo insuportável e surgiram movimentos abolicionistas. Se você fizer uma pesquisa e recuar no tempo, não se espante, pois a escravidão não provocava indignação. Não sabemos que coisas deixarão as crianças espantadas ao saber o que se fazia no século XXI, quando verificarem como éramos cegos e incapazes de perceber. Pegue a ecologia, por exemplo. Há 50 anos, nem a palavra existia. Vivíamos com a ideia de que os recursos naturais da terra, do mar e do céu eram infinitos. Podíamos jogar os dejetos fora, explorar à vontade e isso não teria fim. Hoje, muita gente acordou para essa questão.

Como situar a ecologia nessas “cruzadas pelo bem”?
Em termos de “messianismo humanitário”, eu diria que a fraqueza do movimento ecológico é vislumbrar a relação entre o homem e a natureza como se o confronto fosse entre o homem só e a natureza. Os seres humanos não vivem sós, mas em sociedade. Por conta disso, acho que está na hora de se pensar numa ecologia social. Pensar que a natureza do ser humano é estar com os outros homens. Os ecologistas não podem continuar a tratar os seres humanos como entidades autossuficientes capazes de preservação total. Existe um meio do caminho entre o desejo e a realidade.

Os ecologistas são utópicos?
Eu não creio no paraíso. Essa é uma crença própria do messianismo, acreditar na possibilidade de um paraíso e tentar impô-lo. Como o paraíso é um lugar desejável, esses movimentos não hesitam em usar a força, às vezes militar, para atingir seus objetivos. Acho que no caso dos ecologistas importa menos a ideia de construir um paraíso futuro do que uma visão nostálgica de uma idade de ouro, do paraíso perdido. O objetivo é regressar ao paraíso e tentar reconstituí-lo. Claro que há mil anos não havia uma exploração dos recursos naturais como a que existe hoje. Acho que o paraíso terrestre nunca existiu. Nem creio que possamos dizer: “Naquela época a terra ia bem e hoje vai mal.” Temos uma sociedade complexa, que consome muita energia. O ser humano do século XXI precisa de muito mais energia do que o do século XI, quando ela servia para aquecimento.

Sua memória mais forte do tempo em que vivia na Bulgária foi a imposição do mal praticada em nome do bem? Como isso se manifestava na vida cotidiana?
Para resumir, posso dizer que vivíamos sufocados por slogans. Slogans todo o tempo, a toda hora. Nos muros, havia slogans e palavras de ordem que diziam: “Avante para a vitória do trabalho socialista”; ou “Viva a amizade búlgaro-soviética”. Onde vivíamos não havia nem trabalho socialista, nem amizade, nem igualdade, nem paz. Víamos slogans sobre a igualdade reinante e havia lojas específicas para o consumo de diferentes setores da sociedade. Havia supermercados para os membros do bureau político do partido. Desigualdade absoluta. Os privilegiados possuíam um cartão especial para frequentar esses estabelecimentos e tinham acesso a todos os produtos ocidentais. Num patamar menor, membros do partido que não pertenciam ao alto escalão tinham acesso a outro tipo de lojas, com certo tipo de regalias. E, finalmente, aqueles que não eram membros de nada – nós – frequentavam lojas e supermercados vazios, que não tinham nada. Então, ser confrontado diariamente com esses slogans, com essas declarações vazias sobre a liberdade e a igualdade, era...

...uma eterna contradição...
Exatamente. Era insuportável. As palavras mais nobres perdiam sentido. A gente sabia que atrás delas não havia nada. As palavras estavam lá para esconder a verdade real.

Demagogia, cegueira e palavras vazias não fazem parte, de alguma forma, da natureza da política?
Talvez exista um pouco disso na política, intrinsecamente. O problema é quando se leva ao extremo e não pode se dizer nada em contrário. Se a gente dissesse o contrário, virava opositor e ia para os campos de reabilitação e de trabalhos forçados. Havia dezenas de campos, para onde eram enviados aqueles que levantavam a voz e que diziam, por exemplo: “Vocês dizem que vivemos num país próspero, mas o pão que comprei na padaria é ruim.” Bastava isso para ser preso.

O Brasil criou, recentemente, uma comissão da verdade para esclarecer os crimes políticos durante a ditadura militar. O que o sr. pensa sobre esse tipo de trabalho?
É preciso examinar de perto cada caso. Ver em que circunstâncias e em que contexto ele aconteceu. Minha atitude em princípio é que não pode haver restrições à busca da verdade. Conhecer a verdade é algo indispensável, seja para onde for que ela nos leve, mesmo quando não é agradável. Acho que não basta saber os atos de transgressão de direitos humanos por parte do Estado, mas é preciso também saber em que contexto eles foram produzidos. Não é a mesma coisa ter matado três pessoas ou três mil; essa diferença faz parte da verdade. É preciso reconstituir quem agiu e por que agiu. Seres humanos não são monstros. O mundo não é feito só de vítimas inocentes e de brutos desumanos. Uns e outros são feitos da mesma matéria. Sou pela verdade e pela história, pela abertura e pela divulgação dos arquivos. Mas não penso que, depois de tanto tempo, necessariamente isso deva terminar nos tribunais. Tenho uma posição um pouco mix.

O sr. se apaixonou pela literatura com as histórias das Mil e Uma Noites e com os contos dos irmãos Grimm. Por que as novas gerações leem tão pouco?
Uma das razões é que outras formas de comunicação ocuparam o espaço. Quando eu era criança na Bulgária não havia televisão e quase não havia rádio. O cinema era raro e caro. Não havia computador. Hoje, as crianças passam horas por dia diante de uma tela. Nós não tínhamos isso e os livros e a literatura ocupavam esse espaço.

Os meios de comunicação podem desenvolver a imaginação infantil da mesma forma?
É diferente, mas preciso dizer que a leitura também não é um valor eterno. No século XVIII, apenas 5% da população sabia ler. Isso só mudou depois. Eu li muitos contos populares. Naquela época, as crianças liam muitos contos, conheciam o folclore e isso fazia parte de sua formação. Acho que isso é bom talvez porque fui educado assim. Às vezes penso que os desenhos animados de televisão e as imagens de jogos de computador são muito simplistas, comparados com a riqueza imaginativa dos contos que li. De qualquer forma, acho que é importante perceber que a mudança provoca uma passagem do verbal para o visual. No visual, com frequência, a imaginação não é solicitada. Quando se conta alguma coisa com palavras é preciso imaginar, provoca-se uma excitação da imaginação. Em contrapartida, é muito mais fácil ficar passivo diante de uma tela de televisão ou computador apenas recebendo, recebendo e recebendo.
Revista Planeta

Tudo Azul


A paisagem rochosa do Parque Kosterhavet.


Vista da maior ilha do Parque Nacional de Abrolhos, no litoral da Bahia.
Penhascos do Parque de Fernando de Noronha, na costa de Pernambuco.

Coral rosa australiano branqueado na parte superior devido ao estresse ambiental.

Ilha em Cairns, Queensland, incluída na nova rede australiana de parques marinhos

.Há menos de 90 parques marinhos no mundo. As últimas iniciativas de aumentar a proteção dos oceanos alimentam as esperanças de se alcançar a meta de proteger 10% da superfície azul da Terra até 2020.
Por Renata Valério de Mesquita

O primeiro aviso veio do espaço: “a Terra é azul”, constatou o cosmonauta soviético Yuri Gagarin, em 1961. Mais recentemente, um novo alerta começou a ecoar do fundo dos oceanos: a mergulhadora e bióloga marinha norte-americana Sylvia Earle advertiu que “sem azul não há verde”. No ano passado, na Rio+20, pela primeira vez, a preocupação com as águas salgadas foi levada à mesa de debates e entrou no documento final da conferência.

Apesar de 70% do planeta ser coberto por água, hoje apenas 2,3% dessa extensão está protegida, segundo relatório de 2012 das ONGs globais Th e Nature Conservancy e World Conservation Monitoring Centre. A meta mundial era ter chegado no ano passado a 10%. Mas os avanços tímidos até 2010 fizeram com que o prazo fosse estendido para 2020. Embora os tipos de unidades de conservação variem, há poucos parques marinhos dedicados à conservação de espécies no mundo. Porém nos últimos anos eles estão proliferando: em 1971, havia 12; em 1985, 23; em 2006, 57; e em 2013, eles já são 88.

A última novidade veio da Austrália, em janeiro. O país-ilha elevou as áreas de proteção marinha a outro nível de escala, oficializando a criação de uma rede de parques marinhos nacionais que somam mais de 2,3 milhões de quilômetros quadrados, abrangendo um terço do seu território marítimo.

Até 2010, a maior reserva do tipo ficava no arquipélago britânico de Chagos, no Oceano Índico, com 545 mil quilômetros quadrados. Mas, em 2012, as Ilhas Cook (associadas à Nova Zelândia) dobraram essa marca com a expansão do seu parque marinho para 1,1 milhão de quilômetros quadrados (o tamanho do Egito). Quase simultaneamente a Nova Caledônia francesa formalizou a proteção de uma área de 1,4 milhão de quilômetros quadrados. Ambas, entretanto, estão distantes de
concentrações humanas. Esse não é o caso da Austrália e de grande parte dos países, já que cerca de 40% da população mundial vive a até 100 quilômetros da costa, segundo dados de 2012 do Secretariado da Convenção sobre Diversidade Biológica.

Embora afirme que o impacto da rede de proteção marinha sobre a pesca atinja menos do que 1% do valor da produção das empresas pesqueiras, o governo australiano anunciou subsídios de 100 milhões de dólares australianos (cerca de R$ 210 milhões) para compensar as companhias afetadas pelas restrições à pesca e à exploração de petróleo e gás. Mesmo assim, milhares de postos de trabalho deverão ser fechados e é possível que o país venha a importar peixes e frutos do mar para suprir sua demanda interna.

“O que a Austrália fez é o melhor exemplo possível de liderança visionária na prática”, disse à PLANETA a maior referência mundial nessa área, a oceanógrafa Sylvia Earle, 77 anos, também conhecida como “Sua Profundeza” (trocadilho com “Sua Alteza”) por suas 7 mil horas de mergulho. “Nenhum outro país tomou ações tão amplas com o objetivo de equilibrar os interesses atuais e a necessidade de agir proativamente para proteger a vida dos oceanos.”

Até recentemente, muitos pensavam que o oceano era grande demais para ser abalado, nota a cientista. Mas o declínio de áreas emblemáticas como a Grande Barreira de Corais, na Austrália, mostrou os sérios impactos que os humanos vêm causando.

“Sabemos, hoje, que os oceanos governam o clima e as condições meteorológicas, que absorvem dióxido de carbono e geram a maior parte de oxigênio da atmosfera, que regulam a temperatura e a química do planeta. Na verdade, nós deveríamos proteger os oceanos como se nossas vidas dependessem dele, porque de fato elas dependem.” Sylvia questiona: se os oceanos são o coração azul da Terra, quanto do nosso coração deve ser protegido? “Será que 10% é suficiente? Ou 20%? Ou 90%?”

Nos últimos 20 anos, a pesca em excesso foi responsável pela redução de 80% de espécies como peixe-espada, atum e vários tipos de tubarão. Segundo a Organização para Agricultura e Alimentação (FAO), da ONU, 70% dos estoques comerciais de peixes estão esgotados, superexplorados, extintos ou em processo de difícil recuperação.

Águas nacionais

Apesar da onda mundial de preservação, o Brasil ainda patina na área. “No governo Dilma Rousseff não houve avanço”, afirma Guilherme Fraga Dutra, diretor do Programa Marinho da Conservação Internacional, organização privada, sem fins lucrativos, que atua em mais de 40 países.

Não faltam opções para a criação de novas áreas de proteção marinha no país. Mais de 20 propostas de âmbito federal estão em estágio avançado, mas dependem de vontade política para ser concretizadas. Todas foram estudadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão ambiental do governo brasileiro.

Dos 4,5 mil quilômetros quadrados da costa que integram a zona econômica exclusiva nacional, somente 1,57% está protegido. “Se os projetos já preparados fossem aprovados, chegaríamos a 4,5%. Para alcançar a meta mundial de 10% do nosso território marítimo protegido teremos de fazer, em oito anos, cinco vezes mais do que fizemos nos últimos 30”, diz Dutra.

Hoje existem 102 unidades de conservação marinha no Brasil. Por definição, as unidades de conservação são áreas em que a ação do homem é limitada, seja em terra, seja em água doce ou salgada, mas o termo abrange áreas de vários tipos. As reservas biológicas são as mais restritas do grupo; as únicas atividades permitidas dentro delas são o estudo e pesquisa da biodiversidade. Os parques nacionais são áreas para conservação, estudo, pesquisa e turismo. Já as reservas extrativistas estão liberadas para determinados volumes e formas de pesca e caça. As áreas de proteção ambiental podem ser compostas por território público e privado, com o objetivo de proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos seus recursos naturais.

De todas essas estruturas, os representantes nacionais mais emblemáticos são os Parques Nacionais Marinhos de Abrolhos e de Fernando de Noronha. Localizado no litoral sul da Bahia e cobiçado por interesses de prospecção de petróleo, o complexo de Abrolhos possui o maior banco de corais e a maior diversidade de espécies do Atlântico Sul. Atualmente, dos 900 quilômetros quadrados de sua área total – maior que a extensão do Espírito Santo –, só 1,8% estão sob proteção integral, em forma de parque nacional, principalmente ao redor das ilhas, e 2 mil quilômetros quadrados estão parcialmente protegidos em regime de reservas extrativistas. Entre as propostas de preservação contempladas para a área estão a ampliação do Parque Nacional de Abrolhos e a criação de mais uma APA na região.

Estímulos à pesca

No momento em que a conservação não avança e o controle sobre os estoques de peixes e frutos do mar é deficiente, a indústria pesqueira ganha estímulo no Brasil. Anunciado em janeiro pelo Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), o Plano Safra da Pesca e Aquicultura prevê investimento de R$ 4,1 bilhões até 2014 a fim de dobrar a produção brasileira, atualmente cerca de 1 milhão de toneladas por ano. Segundo dados do ministério, o consumo brasileiro de pescado poderá passar dos atuais nove quilos por habitante/ ano para 13,8 quilos em 2015.

Como garantir que as espécies possam se acasalar, reproduzir-se e alimentar a si e aos seres humanos se o sistema de controle da pesca ainda não encontrou seu eixo? Antes, quando o monitoramento pesqueiro nacional era feito pelo Ibama, por meio de monitores contratados em portos do país, deixava descobertos 85% de pescadores artesanais do Brasil. A partir de 2010, o MPA assumiu essa atividade e adotou outra estratégia, montando uma rede de convênios com ONGs, fundações de pesca e universidades, ao longo da costa. Mas vários repasses foram suspensos em 2012, deixando inoperantes regiões como Norte e Nordeste.

Do lado do governo, a explicação é que alguns parceiros ficaram inadimplentes do ponto de vista administrativo. “Tivemos problemas como prestação de contas e liquidação de notas, entre outras coisas. Mas a questão é muito mais complexa. Talvez não seja a melhor solução entidades não governamentais fazerem o trabalho do governo”, comenta Bruno Mourato, coordenador-geral de monitoramento e informações pesqueiras do MPA. Ele destaca que, mesmo quando todos os parceiros estavam ativos, nem toda a costa brasileira estava coberta.

Na percepção de Tatiana Neves, coordenadora do Projeto Albatroz, mantido pela Petrobras Ambiental, falta coordenar as ações do Ministério da Pesca e do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Ela considera positiva a atuação do MMA em temas marinhos, mas acha que falta amadurecimento ao processo no Brasil. “Todo o sistema está interligado. Tudo que acontece no oceano impacta uma gama gigantesca de espécies e de ambientes. Além de ser muito dinâmico, por suas correntes, o mar não tem fronteira.”
Revista Planeta

A escrita nos terreiros

A transmissão do saber no candomblé é tida como tarefa quase exclusiva da oralidade. Partindo do estudo de cadernos e textos de autoridades religiosas, contudo, um livro constata o forte papel da escrita para as religiões afro-brasileiras.

Por: Sergio Ferretti



Cerimônia de candomblé no terreiro da Mãe Laura, em Rio Branco, no Acre (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).


No livro Entre a oralidade e a escrita: A etnografia nos candomblés da Bahia, Lisa Earl Castillo, norte-americana radicada em Salvador há quinze anos, analisa com brilhantismo a interação entre oralidade e escrita nos processos de transmissão do saber nas comunidades religiosas afro-brasileiras.
A publicação deste texto é fruto de uma parceria entre a CH On-line o Jornal de Resenhas. A cada nova edição do jornal, reproduziremos aqui uma de suas resenhas.

A obra desafia a velha ideia de que os terreiros sejam concebidos como espaço exclusivo da oralidade, constatando sua convivência inescapável com a escrita. Com grande habilidade no trabalho de campo, apresenta críticas sutis tanto a determinadas categorias de praticantes quanto a colegas da academia.

Castillo visitou mais de vinte terreiros e entrevistou dezenas de pessoas entre 1998 e 2005, quando defendeu a tese de doutorado que deu origem ao livro na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Aprendeu que dentro do candomblé é preciso observar e não fazer perguntas, pois quem pergunta não é bem visto, sobretudo se faz a pergunta errada.

Confirma que o saber no candomblé é esotérico, de difícil acesso e divulgação restrita, constituindo um mistério pouco compreensível à modernidade ocidental. Que a posse do conhecimento religioso produz status, portanto saber e poder estão relacionados.
Secretos e adquiridos ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores

Secretos e adquiridos gradativamente ao longo do tempo, os fundamentos desse saber requerem um sistema hierárquico com pequeno número de conhecedores. Tornam-se um bem de alto valor que gera complexa rede de poder dentro da comunidade.

A lógica do segredo, que também existe no culto aos orixás na África, no Brasil seria ampliado pelas condições da escravidão e do ambiente de perseguição em que surgiu o candomblé.

A autora discute as interações complexas entre referências iorubás, muçulmanas e cristãs no uso da escrita pelo povo de candomblé no século 19. Indica que usos da escrita (e também da fotografia) desde então nos candomblés são mencionados, embora marginalmente, em todos os antigos estudos.

Mas constata a tendência da etnografia, em geral, a desconhecer a escrita nos terreiros como aspecto relevante, o que relaciona à ideia enraizada de que esse meio de transmissão e registro de saber seria uma deturpação da pureza original e de que as culturas ágrafas estariam congeladas no tempo, não teriam história.
 
Uma adepta do candomblé durante ritual (foto: Talita Oliveira – CC BY-NC 2.0).
Produção textual ‘para-etnográfica’

Castillo, em contrapartida, constata e analisa a existência na prática privada de 'cadernos de fundamento', usados como auxílio à memória, os quais se assemelham a um diário pessoal, embora sem que se observe seu uso sistemático como na 'santeria' cubana, onde muitos eram comercializados, enquanto na Bahia tinham circulação clandestina.
A capa do livro de Lisa Earl Castillo (imagem: reprodução).

Ela lembra que Ruth Landes, já na década de 1930, teve conhecimento de um desses cadernos e analisa detidamente o caso de legendário manuscrito, conhecido no Axé Opô Afonjá do Rio de Janeiro a partir de 1920, que circulou entre sacerdotes mais elevados.

Informa que ele contém setenta contos da versão afro-brasileira dos versos de Ifá e começou a ser publicado em diferentes edições a partir dos anos 1960. Teve edição integral, em inglês, na Nigéria na década de 1980, sendo divulgado definitivamente no Brasil na década seguinte.

A autora argumenta que as diversas contestações sobre a originalidade desse texto mostram que a polêmica quanto a suas origens é tão interessante quanto sua existência e valorização. E indaga como tantas pessoas chegaram a ter cópia de um texto guardado com tanto sigilo por ser tido como portador de segredos rituais.

O livro também analisa textos escritos e publicados na atualidade por um número crescente de sacerdotes e praticantes de diversos ramos das religiões afro-brasileiras, alguns vendidos até em bancas de jornal.

Segundo Castillo, classificar os textos, em geral, que surgem dentro dos terreiros implica problemas semânticos e ideológicos. Seus autores ocupam posições subalternas em relação à academia, mas pertencem à elite dos terreiros. Na falta de termo melhor, a autora denomina essa produção textual de para-etnografia.


A inalcançável ‘verdadeira realidade’
Na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta

Trata-se de um estudo muito rico em subsídios teóricos e metodológicos. Castillo discute os conflitos epistemológicos decorrentes da metodologia de pesquisa antropológica e constata, por exemplo, que na entrevista etnográfica, como na física nuclear, os dados acabam sendo modificados pelo próprio processo da coleta, fazendo com que a “verdadeira realidade” permaneça fora do alcance do pesquisador.

Discutindo, por outro lado, as influências da etnografia nos terreiros baianos especificamente e o efeito supostamente poluidor do antropólogo sobre seu objeto, ela mostra que tal problema se relaciona com a conhecida oposição entre pureza e deturpação rituais em um número pequeno de casas de culto.

Apesar da existência de numerosos terreiros na Bahia, constata que a bibliografia se concentra no estudo de três casas de tradição ketu que se tornaram famosas e acabaram se constituindo numa espécie de Vaticano da “Roma Negra” que seria Salvador.
As fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente

Com domínio da bibliografia específica, a autora demonstra grande conhecimento sobre o tema pesquisado. Expõe controvérsias, avanços e recuos nas explicações da antropologia com base em aportes teóricos diversos.

Faz rigoroso exercício de análise da literatura sobre candomblé, passando por todos os brasileiros e estrangeiros que realizaram pesquisas na Bahia, a partir dos trabalhos do maranhense Nina Rodrigues no final do século 19. 

Castillo lembra que as fronteiras entre narrativas produzidas por antropólogos, missionários e viajantes sempre foram mutáveis e inseridas no projeto colonial e de expansão cultural do Ocidente, produzindo um discurso de fora – com perspectiva etnocêntrica ou incompleta.

Como disse um amigo, há coisas melhores na vida, mas é sempre estimulante a leitura de um bom livro como este: um trabalho de fôlego elaborado por quem tem vivência intensiva e maturidade na observação.

Lamentamos que trate, em profundidade, apenas do candomblé da Bahia, pois nas demais religiões afro-brasileiras há muitas situações similares. Tal fato justifica-se pelos limites de temas e de prazos das teses acadêmicas (o livro resulta de sua pesquisa de doutorado).

Devido ao grande interesse da obra, deixamos até de reparar que os serviços gráficos de nossas editoras universitárias deveriam ter melhor resolução. 

Entre a oralidade e a escrita: 
a etnografia nos candomblés da Bahia
Lisa Earl Castillo
Salvador, 2008, Edufba 

Sergio Ferretti 
Professor da Universidade Federal do Maranhão 
Autor de Querebentã de Zomadonu: Etnografia da Casa das Minas (Pallas Editora).
Revista Ciência Hoje

Quem tem medo da radioatividade?

Como herança da destruição causada pela explosão das bombas atômicas ao fim da Segunda Guerra, a energia nuclear ganhou uma reputação difícil de mudar. Um novo livro desmistifica a radioatividade e aponta as vantagens e desvantagens de seu uso.

Por: Bruna Ventura


Embora a radioatividade esteja associada a bombas atômicas e acidentes nucleares no imaginário de muitos, ela está por trás de inúmeras aplicações benéficas, como a radioterapia (foto: Dina-Roberts Wakulczyk / CC 2.0 BY).


Foram mais de cem mil mortos imediatamente após a explosão das bombas nucleares em Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945. Noventa por cento deles eram civis. Era o fim da Segunda Guerra Mundial, mas o sofrimento de milhares de pessoas não terminaria em 1945. Gerações depois, as sequelas da radioatividade ainda eram sentidas, como mostram os altos índices de câncer de mama nas meninas nascidas em Hiroshima no pós-guerra.

De uma hora para outra, toda indústria bélica ficou obsoleta, já que a tecnologia de apenas uma bomba poderia destruir uma cidade inteira em minutos.

Ironicamente, as mesmas propriedades do átomo capazes de causar tamanha destruição também podiam salvar vidas se empregadas no tratamento de câncer. A radioterapia, o exame de raios-X e o marca-passo artificial são exemplos de aplicações pacíficas da radioatividade. Para muitos, no entanto, a função da energia nuclear se resume a dizimar vidas.


O temor suscitado pelos cogumelos atômicos se espalhou pelo mundo e ecoa até hoje devido à falta de informações precisas sobre o tema. Para desmistificar essa imagem reducionista e ameaçadora, dois professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) acabam de lançar o livro Perdendo o medo da radioatividade.

No livro, o físico Felipe Damásio e a química Aline Tavares resgatam a história de como o homem explorou o interior do átomo a partir do final do século 19, quando foram descobertos os raios-X, pelo alemão Wilhelm Röntgen, e a radioatividade, pelo francês Antoine Henri Becquerel e pelo casal Pierre e Marie Curie (esta última de origem polonesa).

A obra é fruto de um debate sobre os benefícios e perigos da tecnologia nuclear durante as aulas dadas por eles no Instituto de Física da UFRGS. Durante esses debates, os autores perceberam que muito se falava, mas pouco se sabia sobre o tema e resolveram aprofundá-lo. 


Vilã ou heroína?

A partir dos trabalhos pioneiros do fim do século 19, o livro mostra a evolução do conhecimento científico sobre o interior do átomo, passando pelos trabalhos de Albert Einstein, duas guerras mundiais e a corrida armamentista da Guerra Fria na década de 1960.
O risco de acidentes e a destinação do lixo nuclear são tratados de forma esclarecedora

Ao destacar as aplicações da tecnologia nuclear na medicina molecular, na agricultura, na indústria e na datação de artefatos na arqueologia, os autores mostram que rotulá-la como vilã ou heroína da história depende do ponto de vista a partir do qual se quer enxergá-la.

A obra também aborda a polêmica que ainda envolve a geração de energia nas usinas nucleares como alternativa à queima de combustíveis fósseis das usinas termelétricas de gás e carvão e ao impacto socioambiental das hidrelétricas. Os fantasmas associados às usinas nucleares – o risco de acidentes e a destinação do lixo nuclear – são tratados de forma esclarecedora pelos autores.

O vocabulário do livro é simples, o que faz com que o texto possa ser apreciado mesmo por quem não está familiarizado com o tema. Vale destacar também que as fórmulas matemáticas foram deixadas de lado, para que pessoas sem formação específica em física ou matemática possam formar uma opinião crítica e criteriosa sobre a energia nuclear.

Perdendo o medo da radioatividade
Felipe Damasio e Aline Tavares (ilustrações: Lor)
Campinas, 2010, Autores Associados

Bruna Ventura
Revista Ciência Hoje

Revelação da flora nacional

Novo volume da coleção ‘Espécies arbóreas brasileiras’ traz descrição detalhada de 60 espécies de importância econômica, silvicultural, botânica e ecológica. Obra destina-se tanto a profissionais de áreas afins quanto ao grande público.

Por: Sofia Pereira


‘Aspidosperma pyrifolium’ (pereiro). A espécie, que não tolera baixas temperaturas, ocorre principalmente nas regiões Nordeste e Centro-oeste, com presença marcante também em Minas Gerais. (foto: Paulo Ernani Ramalho Carvalho)


A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) lançou recentemente o quarto volume da coleção Espécies arbóreas brasileiras, do engenheiro florestal Paulo Ernani Ramalho Carvalho. Mais uma vez (os outros três volumes da coleção também foram escritos por Carvalho) o autor coloca à disposição do leitor seu profundo conhecimento da flora arbórea que compõe o ambiente florestal brasileiro.

Em levantamentos quantitativos sobre a vegetação brasileira, já foram catalogadas até o momento cerca de 7.800 espécies arbóreas. Um número que põe o Brasil no topo das nações do planeta com maior biodiversidade florestal
.

Capa do volume 4 da coleção 'Espécies arbóreas brasileiras'.

Com o objetivo de resgatar e democratizar o conhecimento de parte dessa riqueza, Carvalho se entregou ao empreendimento hercúleo de descrever detalhadamente 340 espécies arbóreas. Um desafio que exigiu nada menos que 40 anos de dedicação ao estudo da flora nacional.

“O eixo embrionário para a criação da coleção surgiu em 1980 com a elaboração, em máquina de escrever, das fichas silviculturais de A a Z das espécies”, lembra o autor. Cada livro da coleção descreve 60 árvores, à exceção do volume 1, que descreve 100. Outras 60 espécies já definidas vão compor o volume 5, cujo lançamento está previsto para o final de 2012.

Carvalho conta que, ao planejar a coleção, uma de suas preocupações foi estabelecer critérios para selecionar as espécies dos volumes. Cada um deveria abranger os seis biomas continentais e as 27 unidades da federação, além de apresentar conotação latino-americana, já que muitas espécies ocorrem também no México, América Central, Caribe e América do Sul.

“Decidi escolher, por volume, uma espécie de cada uma das principais famílias botânicas e de cada um dos grandes gêneros brasileiros”, explica Carvalho. As espécies foram escolhidas também por sua importância ecológica, econômica e silvicultural. Nesse último critério, o autor considerou árvores de crescimento rápido ou moderado, que produzissem madeira nobre e tivessem uso múltiplo.

O livro, ricamente ilustrado com fotos e mapas, é um importante suporte para instituições e programas de conservação e recuperação de áreas degradadas. Embora o público-alvo da coleção seja engenheiros florestais, agrônomos, biólogos, paisagistas e estudantes dessas áreas, ela se destina também a ambientalistas, ruralistas, empresários da indústria madeireira e ao grande público.

'
Licania rigida' (oiticica), espécie endêmica do Nordeste brasileiro. A farta sombra dos oiticicais servia de abrigo temporário a viajantes e tropeiros. (foto: Paulo Ernani Ramalho Carvalho)
Informações atualizadas

As informações sobre as espécies apresentadas em cada livro da coleção foram obtidas a partir de extensa revisão bibliográfica, que incluiu a leitura e análise de aproximadamente 1.500 trabalhos por volume. As fotos são do autor e de vários colaboradores, uma vez que há espécies de todos os estados brasileiros.

A elaboração dos mapas das áreas de ocorrência natural das espécies só foi possível graças ao banco de dados construído durante a carreira do autor, que já se aposentou. Não é de espantar, portanto, que cada volume tenha levado em média três anos para ser concluído. Os mapas foram editados pelo setor de geoprocessamento da Embrapa.
O diferencial da coleção são os mapas de ocorrência natural e os dados climáticos e de crescimento

Carvalho conta que a reação dos leitores aos volumes anteriores (publicados em 2003, 2006 e 2008) foi de surpresa, devido às informações não tradicionais e atualizadas, como nomes científicos novos, nova classificação botânica e estados com ocorrências ainda não citadas.

Frente ao cenário atual do conhecimento na área, o diferencial da coleção, segundo o autor, são os mapas de ocorrência natural, os dados climáticos e de crescimento, além das informações inéditas incorporadas à descrição das espécies.

Quanto ao quarto volume especificamente, o principal destaque é a documentação da espécie Dalbergia cearensis, popularmente denominada violeta. Como o nome científico indica, foi originalmente assinalada no Ceará, e sua belíssima madeira é mundialmente conhecida por King Wood (madeira dos reis).

Corte transversal do tronco de 'Dalbergia cearensis' (violeta). A madeira da espécie, quando usada como lenha, libera aroma agradável, que lembra o cravo-da-índia. (foto: José Rabelo)

Das espécies descritas nesse volume, também merecem destaque, além dos conhecidos jacarandá e quaresmeira, o buriti-palito, o cedro-vermelho, a oiticica, a falsa-pelada, a farinha-seca e o pau-de-balsa (a madeira mais leve que se conhece).

O volume 5 da coleção Espécies arbóreas brasileiras, que já tem data de lançamento prevista, resultará de uma parceira entre a Embrapa Informação Tecnológica (Brasília-DF) e a Embrapa Florestas (Colombo-PR), também responsáveis pela edição dos demais volumes.

O autor adianta também que já dispõe de material para mais sete volumes (do 6 ao 12). Como cada um terá 60 espécies, teremos no futuro 420 novas espécies descritas na coleção. Estas, somadas às 340 já preparadas, perfazem um total de 760 espécies.

É um número pequeno, se considerarmos que já foram catalogadas no país até agora quase 8 mil espécies arbóreas. Mas, sem dúvida, é um ótimo começo.


Espécies arbóreas brasileiras (volume 4)
Paulo Ernani Ramalho Carvalho
Brasília/Colombo, 2010, Embrapa
Sofia Pereira
Revista Ciência Hoje

Filósofo do samba

Morreu aos 26 anos, mas foi um divisor de águas na canção popular urbana no Brasil. Livro recém-lançado analisa o uso estratégico do humor e da ironia na obra de Noel Rosa.

Por: Gabriela Reznik


Livro explora sambas em que Noel Rosa usava humor e ironia para falar de coisa séria. A obra é temperada por histórias e curiosidades do universo artístico da época. (imagem: Luiz Fernando Reis/ CC BY 2.0 sobre caricatura de Guilherme Bandeira)

"Vivo escravo do meu samba / muito embora vagabundo". Se no imaginário popular da década de 1920 o malandro era aquele que não queria saber de trabalho, vivia do jogo e na orgia, na obra do cantor e compositor Noel Rosa (1910-1937) – autor dos versos acima –, o personagem recebe outra roupagem. Em sua música, ele está associado à imagem do sambista, que usa do humor e da ironia para expor sua condição marginal na sociedade e criticar os valores dominantes da época.

A análise é da especialista em educação Mayra Pinto, da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Noel Rosa: o humor na canção, lançado em maio deste ano, mês que marcou os 75 anos de morte do compositor.

Para quem busca uma leitura leve, o livro pode não ser o mais indicado. A autora faz uma análise aprofundada de canções do poeta da Vila, que perpassam sua trajetória musical nos sete anos de intensa produção, até sua morte prematura por tuberculose aos 26.

Por ser uma adaptação da pesquisa de doutorado de Mayra Pinto, o livro traz resquícios da linguagem e organização acadêmica – com introdução, desenvolvimento e conclusão –, tornando-se, muitas vezes, um tanto hermético para os não familiarizados com termos técnicos empregados na análise musical e literária.

Com base nos conceitos filosóficos do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), a autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, explorando os sambas em que apresenta uma abordagem crítica sobre a condição social do sambista, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana.
A autora foca o papel da ironia na poesia de Noel, seu jeito “falado” de cantar e sua contribuição para uma nova formatação da canção popular urbana

A autora enriquece a leitura com detalhes históricos e curiosidades do universo artístico no qual Noel viveu ao lado dos sambistas do Estácio, cujos principais representantes foram os compositores Ismael Silva (1905-1978) e Nilton Bastos (1899-1931).

Mayra Pinto avalia que o período foi um divisor de águas na trajetória do samba, cujo legado se estende aos dias de hoje. Com pé no samba de roda e no carnaval, o grupo do Estácio revolucionou o estilo da canção, “em que um estribilho fixo era cantado por todos enquanto um solista fazia os improvisos com letras variantes”. Antes, nos sambas tradicionais, não havia uma estrutura única.

No canto, Noel se destaca pelo domínio do discurso falado, cujo maior exemplo, segundo a pesquisadora, é a interpretação da canção ‘Gago apaixonado’. Contrariando o estilo usual da voz impostada, influenciada pelo canto de ópera, “ele se filia ao tipo de interpretação criada magistralmente por Mário Reis, que igualmente tinha uma voz não tão potente e primou por um canto mais ‘falado’”, conta a autora em trecho do livro.


O riso que denuncia

Noel Rosa trocou o futuro “promissor” de médico – cursou um ano da faculdade de medicina – pelo de sambista aos 20 anos de idade. A escolha teria sido determinante para que o samba assumisse um “centro emanente de positividade” na obra do poeta.
“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”

“Noel fundou uma voz que canta, amargamente, as vicissitudes de se produzir arte num país em que o reconhecimento do artista pobre não é algo fácil de ser conquistado”, afirma a pesquisadora. “Mas canta alegremente, e com o orgulho de produzi-la apesar disso.”

Se os versos de Noel provocam riso, também deflagram tensões existentes entre o universo de pobreza e marginalidade do malandro e o mundo do trabalho formal. Segundo a autora, é nesse sentido que o humor se configura como uma estratégia de ‘disfarce’ ao permitir que um viés crítico permeasse suas canções sem deixar margem para censura – que se fazia fortemente presente naquele período.


Na cena-estátua que homenageia o poeta, fincada em Vila Isabel, Noel é servido por um garçom. Apesar da morte precoce aos 26 anos, o compositor tem obra extensa, que marca a história do samba. (foto: Wikimedia Commons/ Junius – CC BY-SA 3.0)

No fim das contas, o livro é uma homenagem ao sambista que, em tão pouco tempo de vida, marcou significativamente a canção popular. Reconhecimento expresso nos versos póstumos compostos por Cartola: “Era o rei da filosofia / Fez da musa o que queria / Zombou da inspiração / Os seus versos ritmados / Por ele mesmo cantados / Tinham bela entoação”.


Noel Rosa: o humor na canção 
Mayra Pinto 
São Paulo, 2012, Ateliê Editorial 

Gabriela Reznik
Revista Ciência Hoje

O câncer e a última cruzada

Ganhador do prêmio Pulitzer de 2011, livro conta histórias impactantes da doença e das pessoas que ajudaram a jogar luz sobre uma das mais longas guerras da ciência médica.

Por: Marcelo Garcia



Com relatos esparsos, pouco conclusivos e de invariável pessimismo, o câncer se escondeu no silêncio e nas sombras desde a Antiguidade, até ser arrastado para a luz dos holofotes da mídia e da ciência no século 20. (foto: Futurilla/Flicrk – CC BY 2.0)


Milhares de biografias reunidas em mais de 600 páginas. Algumas breves, resumidas a poucas linhas. Outras servem de fio condutor para toda a narrativa. Juntas, formam um caleidoscópio de personalidades, sonhos, frustrações, pequenas e grandes derrotas e vitórias para descrever dois lados de uma única e poderosa história: a biografia da doença mais desafiadora que o homem já enfrentou e a cruzada moderna da humanidade para superá-la.
A obra nos leva às ‘origens’ do biografado, apresenta seus ‘feitos’ e obstinados antagonistas. A única ‘falha’ é não terminar com um ‘ponto final’

O Imperador de todos os males: uma biografia do câncer é, em certo sentido, a essência do gênero biográfico. Leva-nos às ‘origens’ do biografado, conta seus ‘feitos’, apresenta seus obstinados antagonistas e até desperta um certo fascínio inquietante por sua ‘personalidade’. A única ‘falha’ é não terminar com um 'ponto final' – claro que não por culpa do autor, o médico indiano naturalizado norte-americano Siddhartha Mukherjee.

Vencedora do prêmio Pulitzer em 2011, a obra é um trabalho jornalístico de pesquisa impressionante. Com uma linguagem simples e envolvente, a narrativa combina suspense, drama e até intriga política ao entrelaçar a experiência pessoal do autor e uma farta coleção de referências históricas e científicas. O ritmo do relato acompanha o ir e vir da pesquisa, ao explorar alternativas paralelas, recuperar histórias e estudos esquecidos no tempo – e até refletir certa estagnação pontual, como na quimioterapia do fim da década de 1980.

Apesar de pintar um quadro forte das vidas impactadas pelo câncer, a obra passa longe do clima sinistro que se poderia esperar e tem o mérito adicional de apresentar, de forma clara, conceitos científicos complexos. De processos intracelulares e genéticos até metodologias de testes clínicos, Mukherjee cria um manual das estratégias de guerra contra a doença, para leigos e iniciados, de dar inveja a Sun Tzu.

Luz e sombra

A história começa na infância do biografado: o indiano busca nas memórias do homem os primeiros vestígios do câncer. Papiros egípcios, estudos gregos sobre a bile negra, a desesperança de um médico do Império Romano, esqueletos em tumbas ameríndias e cadáveres do Renascimento, limpadores de chaminés, descobertas deuma polonesa na França, gás mostarda e fábricas de corantes alemãs – são algumas das pistas do passado de uma doença ‘fantasma’ e pouco registrada.


Emergimos desse mergulho milenar para destrinchar a história da anatomia, da química, da biologia e da medicina do câncer nos dois últimos séculos, seguindo os passos – e as intrigas – da nata da pesquisa na área. É impressionante notar como, até a metade do século 20, essa era uma guerra de cegos: ora descritos como geniais, ousados e infatigáveis, ora como compulsivos e obcecados, tateavam na penumbra à procura de uma ‘bala mágica’ capaz de destruir o câncer.

Com um entendimento perigosamente parco dos mecanismos da doença, muitas das primeiras estratégias utilizadas, como a mastectomia radical e primitivas alternativas de quimioterapia, forçavam os limites do conhecimento e da ética de sua época, por vezes com efeitos quase tão devastadores quanto o próprio câncer.

Pesquisadores que se dedicavam a estudar a biologia da doença e seu tratamento passaram décadas trabalhando de forma isolada; eram como ‘conhecidos’ que frequentam os mesmos lugares, mas voltam para casa sempre sozinhos – a analogia é do próprio Mukherjee e reflete uma realidade que só começou a mudar na década de 1980, com o avanço da genética e o desenvolvimento de terapias mais específicas e menos agressivas.

Uma jogada sagaz transformou o menino Einar Gustafson em Jimmy, garoto-propaganda da luta contra o câncer, e ajudou a colocar a doença na pauta política e social dos EUA. À direita, propaganda dos anos 1960, quando a pressão social sobre as empresas tabagistas era fomentada pelos lobistas anticâncer. (imagens: reprodução)

Outro ponto interessante é observar que as bancadas dos laboratórios são apenas uma das trincheiras dessa guerra. Na verdade, muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi retirada das sombras à força, trabalhada na casamata do lobby político e exposta aos holofotes da mídia, transformando-se, só assim, no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva.
Muitos dos grandes avanços só ocorreram quando a doença foi transformada no grande inimigo de uma cruzada moderna e definitiva

Mukherjee é um admirador do brilhantismo dos muitos ‘generais’ da frente anticâncer, como o patologista Sidney Farber e a socialitee lobista Mary Lasker, cujos esforços conjuntos colocaram a doença na pauta de discussão dos Estados Unidos.

Por outro lado, o livro também exalta a grandeza do biografado: poderoso, antigo e misterioso, o câncer é uma célula humanaque leva às últimas consequências suas estratégias de sobrevivência – e cada pequena vitória sobre ele deve ser comemorada. Em síntese, O imperador de todos os males é uma obra rica, interessante e que desempenha seu papel nesse confronto milenar ao discutir abertamente e ajudar a desmistificar o câncer.

A trincheira brasileira

Era esperado, mas não deixa de ser curioso notar a pequena participação de coadjuvantes que não sejam norte-americanos ou europeus na obra – exceção feita a alguns pesquisadores de países asiáticos, muitos deles radicados nos Estados Unidos como o próprio autor.

É conhecido o pioneirismo dessas regiões no estudo do câncer e os Estados Unidos foram os primeiros a investir pesadamente no combate à doença, mas a ausência de brasileiros e latino-americanos é marcante.

O Brasil aparece apenas uma vez, em observações de um perspicaz oculista do século 19 sobre um câncer de córnea hereditário. Teria mesmo a pesquisa ao sul do Equador tão pouca relevância mundial? 

O imperador de todos os males: uma biografia do câncer
Siddhartha Mukherjee
São Paulo, 2012, Companhia das Letras

Marcelo Garcia
Revista Ciência Hoje

Duelos, segredos e matemática

Livro conta história de um episódio fundamental para o nascimento da matemática moderna e retrata uma das disputas mais virulentas da ciência renascentista.

Por: Marcelo Garcia


Duas das mentes mais afiadas do século 16 e uma questão: revelar ou não ao mundo o segredo da fórmula secreta da resolução das equações cúbicas? (imagens: Tartaglia e Cardano/ Wikimedia Commons)


Fórmulas misteriosas, duelos públicos, traições, genialidade, ambição – e matemática! Este é o instigante universo apresentado no livro A fórmula secreta - Tartaglia, Cardano e o duelo matemático que inflamou a Itália da Renascença, último lançamento da coleção 'Meio de cultura', da Editora Unicamp. A publicação resgata a história dos italianos Niccolò Tartaglia e Gerolamo Cardano e da fórmula revolucionária para resolução de equações do terceiro grau. Numa viagem que começa no Egito Antigo, passa pela Grécia, Mesopotâmia e Pérsia até chegar à Itália do século 16, a obra reconstitui um episódio polêmico que marca, para muitos, o início do período moderno da matemática.


Apesar de tratar basicamente de uma história sobre equações, não é necessário nenhum conhecimento prévio para seguir os passos dos protagonistas na Itália renascentista, retratada em vivas cores pelo autor, o físico experimental Fabio Toscano. No fim do século 15, a prosperidade comercial tornou comum na região a existência de escolas de matemática – uma área então bem diferente da atual: as escolas focavam a resolução de casos específicos e não a identificação de regras gerais, por exemplo, e como não existia um sistema de símbolos estabelecido, as equações eram escritas com palavras. 

Nesse contexto, acompanhamos a trajetória de Tartaglia. Pobre, autodidata e gago desde a infância – após receber um golpe de sabre no rosto –, ele faz sucesso na juventude em curiosos duelos de conhecimento com outros sábios, comuns na Itália do século 16 e decisivos para impulsionar ou destruir carreiras. 
Num duelo de conhecimentos, Tartaglia resolveu, sem revelar o método, equações cúbicas tidas como impossíveis, feito que chamou a atenção de Cardano

Em um desses duelos, Tartaglia derrota com facilidade o veneziano Antonio Maria Fior ao resolver – sem revelar seu método – problemas de um tipo julgado insolúvel: os “cubos e coisas iguais a número” – equações de terceiro grau do tipo x3 + ax = b. 

A notoriedade do feito vai aproximá-lo de outro brilhante intelectual de sua época, Gerolamo Cardano, obcecado pela ‘fórmula secreta’. Os dois constroem uma relação conturbada, marcada por amizade e hostilidade, que caminha rumo a um derradeiro e inevitável desafio. No processo, a matemática passará por avanços incríveis, com a descoberta de regras gerais para a resolução de equações do terceiro e do quarto graus, além de tangenciar a importante discussão sobre a necessidade de tornar públicos ou não conhecimentos científicos revolucionários. 

Nas páginas da história

A partir de muitos documentos históricos e variadas fontes bibliográficas, Toscano não só apresenta a polêmica entre os italianos, mas mergulha fundo na história da álgebra. A viagem nos leva a conhecer contribuições e conquistas de egípcios, gregos e árabes para a matemática (como a substituição dos algarismos romanos pelos indo-arábicos e a descoberta da solução para equações do segundo grau), além de explorar a estagnação de quase dois mil anos que se abateu sobre o campo – quebrada por Tartaglia e Cardano
.
Homem de muitos talentos, Tartaglia atuou em diversas áreas do conhecimento e foi, inclusive, precursor de um novo campo, a balística - apesar de nunca ter disparado um tiro. (foto: Flickr/ lndhslf72 – CC BY-NC-ND 2.0)

A minúcia com que Toscano reproduz os documentos históricos acrescenta um sabor especial à narrativa. Muito da relação entre Tartaglia e Cardano está registrado na profícua correspondência trocada pelos dois – em cartas privadas e comunicados públicos. A partir da transcrição desses documentos é possível vislumbrar suas inseguranças, seus ressentimentos e os subterfúgios que utilizam para atingir seus objetivos. No entanto, essa opção também representa o ponto fraco do livro, já que a reprodução exagerada e repetitiva dos originais acaba por tirar o ritmo da parte final da obra. 
A partir das muitas cartas trocadas entre os matemáticos é possível vislumbrar suas inseguranças, ressentimentos e os subterfúgios que utilizam para atingir seus objetivos 

Ainda assim, é preciso destacar a habilidade de Toscano em apresentar a matemática de forma simples. O autor consegue percorrer, sem grandes traumas, caminhos que vão da extração de raízes cúbicas a demonstrações geométricas mais complexas – sem dúvida uma tarefa das mais desafiadoras para qualquer iniciativa de divulgação científica ligada à matemática. No entanto, comete o pecado de não detalhar o valor e as consequências do feito de Tartaglia/Cardamo para a álgebra, que ficam apenas subentendidos. 

Em última análise, A fórmula secretaapresenta-se como uma ótima opção para conhecer um pouco mais sobre a história da matemática e acompanhar um dos debates científicos mais inflamados do século 16 no campo. Mais do que isso, é uma obra de fácil leitura e uma boa mostra de que é possível abordar temas como álgebra de forma interessante, inteligente e acessível ao grande público. 
A fórmula secreta - Tartaglia, Cardano e o duelo matemático que inflamou a Itália da Renascença
Fábio Toscano

Marcelo Garcia
Revista Ciência Hoje

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Derretimento do Ártico custa US$ 60 trilhões ao planeta

RAFAEL GARCIA

A emissão de gás metano pelo derretimento do solo congelado no Ártico vai acelerar a mudança climática e trará um prejuízo global de U$ 60 trilhões até 2100.

Mais de 80% dos danos, dizem os autores da estimativa, serão em países pobres, longe dos ursos polares.

Esses números são os valores médios de uma simulação feita por cientistas da Holanda e do Reino Unido, apresentada na revista "Nature".
Josh Haner/The New York Times 
Bolhas de gás metano escapam do lago nevado no Ártico


Para entrelaçar economia e ambiente, os cientistas usaram um método similar ao do relatório Stern, o modelo mais completo já feito sobre o impacto financeiro do aquecimento global, bancado pelo governo britânico em 2006.

O pesquisadores incluíram na nova simulação as consequências da liberação de metano do permafrost (solo permanentemente congelado) da Sibéria. Esse gás deve acelerar o aquecimento global e contribuirá para piorá-lo.

Segundo os cientistas, a emissão de 50 bilhões de toneladas de metano aprisionados na região causaria um aumento de 15% no impacto financeiro descrito no relatório Stern, que estimava em US$ 400 trilhões a perda econômica gerada pelo aquecimento até 2100.

BOMBA-RELÓGIO

"Isso é uma bomba-relógio econômica que não vem sendo sendo reconhecida atualmente no plano mundial", diz Gail Whiteman, da Universidade Erasmus, de Roterdã, líder do trabalho.

A pesquisadora afirma que adiantou a liberação dos dados de seu estudo porque o aquecimento do Ártico vinha sendo discutido em clima de otimismo por países boreais.
William Mur/Ed. de arte/Folhapress 


Como 30% das reservas não mapeadas de gás e 13% das de petróleo estão lá, a seguradora Lloyd's of London estima que o investimento na região possa atingir US$ 100 bilhões nos próximos dez anos.

E a exploração do Ártico será facilitada pelo derretimento do gelo em si, que abre rotas de navegação e barateia o transporte.

O retorno do capital, porém, precisaria ser três ordens de magnitude maior para compensar os danos globais. E os países que teriam algum lucro não são os mais ameaçados pela mudança climática, que afetará terras agricultáveis tropicais. "Por isso queremos levar essa discussão ao Fórum Econômico Mundial", diz Whiteman.

Segundo os cientistas, há pouca esperança de evitar a liberação do metano siberiano, mesmo que as emissões de CO2 sejam reduzidas.

Os cenários com os quais os pesquisadores trabalham variam entre uma liberação em dez anos até uma em trinta anos, mas o impacto econômico acumulado seria quase o mesmo.

A única opção regional de medida paliativa é controlar a circulação de navios e a exploração de petróleo para evitar a emissão de carbono negro (forma de fuligem), que faz o gelo absorver radiação.

Os cientistas reconhecem, porém, que o estudo ainda é muito impreciso. Mas isso também não é boa notícia.

"No escopo da simulação, há 5% de chance de que o prejuízo seja de 'apenas' US$ 10 trilhões, mas há 5% de risco de que o impacto seja de US$ 220 trilhões", diz Chris Hope, da Universidade de Cambridge, coautor do trabalho.
Folha de S. Paulo

sexta-feira, 26 de julho de 2013

A grande farsa do gás de xisto

Energia barata versus poluição prolongada: nos EUA, o dilema da exploração de gás e petróleo de xisto não atormentou industriais nem o poder público. Em menos de uma década, essas novas reservas recolocaram o país no crescimento, doparam o emprego e restabeleceram a competitividade. Mas e se for apenas uma bolha?

por Nafeez Mosaddeq Ahmed






Se crermos nas manchetes da imprensa norte-americana anunciando um boomeconômico graças à “revolução” do gás e do petróleo de xisto, o país logo estará se banhando em ouro negro. O relatório de 2012, “Perspectivas energéticas mundiais”, da Agência Internacional de Energia (AIE), informa que, por volta de 2017, os Estados Unidos arrebatarão da Arábia Saudita o primeiro lugar na produção mundial de petróleo e conquistarão uma “quase autossuficiência” em matéria energética. Segundo a AIE, a alta programada na produção de hidrocarbonetos, que passaria de 84 milhões de barris/dia em 2011 para 97 milhões em 2035, proviria “inteiramente dos gases naturais líquidos e dos recursos não convencionais” – sobretudo o gás e o óleo de xisto –, ao passo que a produção convencional começaria a declinar a partir de... 2013.

Extraídos por fraturamento hidráulico (injeção, sob pressão, de uma mistura de água, areia e detergentes para fraturar a rocha e deixar sair o gás), graças à técnica da perfuração horizontal (que permite confinar os poços à camada geológica desejada), esses recursos só são obtidos ao preço de uma poluição maciça do ambiente. Entretanto, sua exploração nos Estados Unidos criou várias centenas de milhares de empregos, oferecendo a vantagem de uma energia abundante e barata. Conforme o relatório de 2013, “Perspectivas energéticas: um olhar para 2040”, publicado pelo grupo ExxonMobil, os norte-americanos se tornarão exportadores líquidos de hidrocarbonetos a partir de 2025 graças aos gases de xisto, num contexto de forte crescimento da demanda mundial do produto.

Mas e se a “revolução dos gases de xisto”, longe de robustecer uma economia mundial convalescente, inflar uma bolha especulativa prestes a explodir? A fragilidade da retomada, tanto quanto as experiências recentes, deveria convidar à prudência diante de tamanho entusiasmo. A economia espanhola, por exemplo, outrora tão próspera – quarta potência da zona do euro em 2008 –, está hoje em maus lençóis depois que a bolha imobiliária, à qual ela se agarrava cegamente, explodiu sem aviso prévio. A classe política não aprendeu muita coisa com a crise de 2008 e está a ponto de repetir os mesmos erros no campo das energias fósseis.

Em junho de 2011, uma pesquisa do New York Timesjá revelava algumas fissuras no arcabouço midiático-industrial do boomdos gases de xisto, atiçando assim as dúvidas alimentadas por diversos observadores – geólogos, advogados, analistas de mercado – quanto aos efeitos da publicidade das companhias petrolíferas, suspeitas de “superestimar deliberadamente, e mesmo ilegalmente, o rendimento de suas explorações e o volume de suas jazidas”.1 “A extração do gás do xisto existente no subsolo”, escreveu o jornal, “poderia se revelar menos fácil e mais cara do que afirmam as empresas, como se vê pelas centenas de e-mails e documentos trocados pelos industriais a esse respeito, além das análises dos dados recolhidos em milhares de poços.”

No início de 2012, dois consultores norte-americanos soaram o alarme na Petroleum Review, a principal revista britânica da indústria petrolífera. Incertos quanto à “confiabilidade e durabilidade das jazidas de gás de xisto norte-americanas”, eles observam que as previsões dos industriais coincidem com as novas regras da Security and Exchange Commission (SEC), o organismo federal de controle dos mercados financeiros. Adotadas em 2009, essas regras autorizam as empresas a calcular o volume de suas reservas como bem entendam, sem precisar da verificação de uma autoridade independente.2

Para os industriais, superestimar as jazidas de gás de xisto permite pôr em segundo plano os riscos associados à sua exploração. Ora, o fraturamento hidráulico não apenas tem efeitos prejudiciais sobre o meio ambiente como coloca um problema estritamente econômico, uma vez que gera uma produção de vida muito curta. Na revista Nature, um ex-consultor científico do governo britânico, David King, esclarece que o rendimento de um poço de gás de xisto diminui de 60% a 90% após seu primeiro ano de exploração.3

Uma queda tão significativa torna evidentemente ilusório qualquer objetivo de rentabilidade. Depois que um poço se esgota, os operadores devem escavar imediatamente outros para manter seu nível de produção e pagar suas dívidas. Sendo a conjuntura favorável, essa corrida pode iludir durante alguns anos. Foi assim que, combinada com uma atividade econômica decrescente, a produção dos poços de gás de xisto – frágil a longo prazo, vigorosa por algum tempo – provocou uma baixa espetacular dos preços do gás natural nos Estados Unidos: de US$ 7 ou 8 por milhão de BTU (British Thermal Unit) para menos de US$ 3 ao longo de 2012.

Os especialistas em aplicações financeiras não se deixam enganar. “A economia do fraturamento é destrutiva”, adverte o jornalista Wolf Richter na Business Insider.4 “A extração devora o capital a uma velocidade impressionante, deixando os exploradores sobre uma montanha de dívidas quando a produção cai. Para evitar que essa diminuição engula seus lucros, as companhias devem prosseguir bombeando, compensando poços esgotados com outros que se esgotarão amanhã. Cedo ou tarde esse esquema se choca com um muro, o muro da realidade.”

Arthur Berman, um geólogo que trabalhou para a Amoco e a British Petroleum, confessa-se surpreso com o ritmo “incrivelmente acelerado” do esgotamento das jazidas. E, dando como exemplo o sítio de Eagle Ford, no Texas – “É a mãe de todos os campos de óleo de xisto” –, revela que “a queda anual da produção ultrapassa os 42%”. Para garantir resultados estáveis, os exploradores terão de perfurar “quase mil poços suplementares, todos os anos, no mesmo sítio. Ou seja, uma despesa de US$ 10 bilhões a 12 bilhões por ano... Se somarmos tudo, isso equivale ao montante investido para salvar a indústria bancária em 2008. Onde arranjarão tanto dinheiro?”.5

A bolha do gás já produziu seus primeiros efeitos sobre algumas das maiores empresas petrolíferas do planeta. Em junho último, o diretor-presidente da Exxon, Rex Tillerson, queixou-se de que a queda dos preços do gás natural nos Estados Unidos era sem dúvida uma boa notícia para os consumidores, mas uma maldição para sua companhia, vítima da diminuição drástica dos lucros. Se, diante dos acionistas, a Exxon continuava fingindo que não perdera um centavo por causa do gás, Tillerson desfiou um discurso quase lacrimoso diante do Council on Foreign Relations (CFR), um dos fóruns mais influentes do país: “Logo, logo, perderemos até as calças. Não ganhamos mais dinheiro. As contas estão no vermelho”.6

Mais ou menos na mesma ocasião, a companhia de gás britânica BG Group se via às voltas com “uma depreciação de seus ativos referentes ao gás natural norte-americano da ordem de US$ 1,3 bilhão”, sinônimo de “queda sensível em seus lucros intermediários”.7Em 1º de novembro de 2012, depois que a empresa petrolífera Royal Dutch Shell amargou três trimestres de resultados medíocres, com uma perda acumulada de 24% em um ano, o serviço de informações da Dow Jones divulgou essa notícia funesta, alarmando-se com o “prejuízo” causado ao conjunto do setor de ações pela retração do gás de xisto.

Da panaceia ao pânico

A bolha não poupa sequer a Chesapeake Energy, que, no entanto, é a pioneira na corrida aos gases de xisto. Esmagada por dívidas, a empresa norte-americana precisou vender parte de seus ativos – campos e gasodutos a um valor total de US$ 6,9 bilhões – para honrar seus compromissos com os credores. “A empresa está indo um pouco mais devagar, muito embora seu CEO a tenha transformado num dos líderes da revolução dos gases de xisto”, deplorou o Washington Post.8

Como puderam cair tanto os heróis dessa “revolução”? O analista JohnDizard observou, noFinancial Timesde 6 de maio de 2012, que os produtores de gás de xisto haviam gasto quantias “duas, três, quatro ou mesmo cinco vezes superiores aos seus fundos próprios a fim de adquirir terras, escavar poços e levar a bom termo seus projetos”. Para financiar a corrida do ouro, foi necessário pedir emprestadas somas astronômicas “em condições complexas e exigentes”, lembrando que Wall Street não se afasta nunca de suas normas de conduta habituais. Segundo Dizard, a bolha do gás deveria, porém, continuar crescendo por causa da dependência dos Estados Unidos desse recurso economicamente explosivo. “Considerando-se o rendimento efêmero dos poços de gás de xisto, as perfurações devem prosseguir. Os preços acabarão por se ajustar a um nível elevado, e mesmo muito elevado, para cobrir não apenas dívidas antigas, mas também custos de produção realistas.”

Não se descarta, contudo, que diversas companhias petrolíferas de grande porte se vejam simultaneamente na iminência da ruína financeira. Caso essa hipótese se confirme, diz Berman, “assistiremos a duas ou três falências ou operações de compra de enorme repercussão; cada qual resgatará seus papéis, os capitais se evaporarão e teremos o pior dos cenários”.

Em suma, o argumento segundo o qual os gases de xisto protegeriam os Estados Unidos ou a humanidade contra o “pico do petróleo” – nível a partir do qual a combinação das pressões geológicas e econômicas tornará a extração do produto bruto insuportavelmente difícil e onerosa – não passa de um conto de fadas. Diversos relatórios científicos independentes, divulgados há pouco, confirmam que a “revolução” do gás não trará nenhum alívio nessa área.

Num estudo publicado pela revista Energy Police, a equipe de King chegou à conclusão de que a indústria petrolífera superestimou em um terço as reservas mundiais de energia fóssil. As jazidas ainda disponíveis não excederiam 850 bilhões de barris, enquanto as estimativas oficiais falam de mais ou menos 1,3 trilhão. Segundo os autores, “imensas quantidades de recursos fósseis permanecem nas profundezas da terra, mas o volume de petróleo explorável pelas tarifas que a economia mundial tem o costume de suportar é limitado, devendo além disso diminuir a curto prazo”.9

A despeito dos tesouros em gás arrancados do subsolo por fraturamento hidráulico, a diminuição das reservas existentes prossegue num ritmo estimado entre 4,5% e 6,7% por ano. King e seus colegas repelem, pois, categoricamente a ideia de que o boomdos gases de xisto poderá resolver a crise energética. Por sua vez, o analista financeiro Gail Tverberg lembra que a produção mundial de energias fósseis convencionais não aumentou depois de 2005. Essa estagnação, na qual ele vê uma das causas principais da crise de 2008 e 2009, anunciaria um declínio suscetível de agravar ainda mais a recessão atual – com ou sem gás de xisto.10 E não é tudo: numa pesquisa publicada em conjunto com o relatório da AIE, a New Economics Foundation (NEW) prevê que o pico do petróleo será alcançado em 2014 ou 2015, quando os gastos com a extração e o abastecimento “ultrapassarão o custo que as economias mundiais podem assumir sem causar danos irreparáveis às suas atividades”.11

Submergidos pela retórica publicitária dos lobistas da energia, esses trabalhos não chamaram a atenção da mídia nem dos políticos. É lamentável, pois podemos entender perfeitamente sua conclusão: longe de restaurar a prosperidade, os gases de xisto inflam uma bolha artificial que camufla temporariamente uma profunda instabilidade estrutural. Quando ela explodir, provocará uma crise de abastecimento e um aumento de preços que talvez afetem dolorosamente a economia mundial.


Nafeez Mosaddeq Ahmed

Cientista político, é diretor do Institute for Policy Research and Development, Brighton, Reino Unido

Ilustração: Daniel Kondo

1 “Insiders sound an alarm amid a natural gas rush” [Especialistas soam um alarme em meio a uma corrida de gás natural], New York Times, 25 jun. 2011.
2 Ruud Weijermars e Crispian McCredie, “Inflating US shale gas reserves” [Inflando as reservas de gás de xisto dos EUA], Petroleum Review, Londres, jan. 2012.
3 David King e James Murray, “Climate policy: oil’s tipping point has passed” [Política climática: o ponto de inflexão do petróleo passou], Nature, Londres, n.481, 26 jan. 2012.
4 Wolf Richter, “Dirt cheap natural gas is tearing up the very industry that’s producing it” [Gás natural sujo e barato está destruindo a indústria que o produz], Business Insider, Portland, 5 jun. 2012.
5 “Shale gas will be the next bubble to pop. An interview with Arthur Berman” [O gás de xisto será a próxima bolha a estourar. Entrevista com Arthur Berman], 12 nov. 2012. Disponível em: <www.oilprice.com>.
6 “Exxon: ‘losing our shirts’ on natural gas” [“Exxon: ‘perdendo as calças’ no gás natural”], Wall Street Journal, Nova York, 27 jun. 2012.
7 “US shale gas glut cuts BG Group profits” [O excesso de gás de xisto nos EUA reduz lucros do BG Group], The Financial Times, Londres, 26 jul. 2012.
8 “Debt-plagued Chesapeake energy to sell $6,9 billion worth of its holdings” [Pressionada pela dívida de energia, a Chesapeake vende US$ 6,9 bilhões de valor de suas participações], Washington Post, 13 set. 2012.
9 Nick A. Owen, Oliver R. Inderwildi e David A. King, “The status of conventional world oil reserves – hype or cause for concern?” [O estado das reservas de petróleo convencional do mundo – publicidade exagerada ou motivo de preocupação?], Energy Policy, Guildford, v.38, n.8, ago. 2010.
10 Gail E. Tverberg, “Oil supply limits and the continuing financial crisis” [Limites do abastecimento de petróleo e a continuação da crise financeira], Energy, Stanford, v.35, n.1, jan. 2012.
11 “The economics of oil dependence: a glass ceiling to recovery” [A economia da dependência do petróleo: um teto de vidro para a recuperação], New Economics Foundation, Londres, 2012.
Le Monde Diplomatique